Arquivos em disputa pelo direito à memória

Dez anos se passaram desde o gigantesco esquema de manipulação da opinião pública que mergulhou o país em uma de suas maiores crises econômicas e políticas. É necessário posicionar o golpe de caráter direitista articulado desde 2014 à Operação Lava Jato como elemento central na engenharia de um projeto autoritário que fortaleceu o avanço da extrema-direita no Brasil e o desmonte das estruturas estratégicas do país, como a Petrobras, servindo como braço jurídico-midiático da retórica privatista e da captura do Estado por interesses antipopulares.

Esses episódios recentes, longe de serem desvios pontuais, precisam ser compreendidos como parte de um ciclo histórico de golpes, censuras e perseguições que estruturam nosso país. Cinquenta anos marcam o início da ditadura civil-militar de 1964, momento de menor liberdade política vivido no Brasil. A repressão, as estratégias de propaganda e o apagamento da memória formam um passado que insiste em se atualizar, por isso, a defesa da memória dos conflitos sociais e políticos é uma tarefa urgente, como tem dado exemplo os movimentos sociais em Belo Horizonte ao ocupar a antiga sede do DOPS em defesa da construção do Memorial dos Direitos Humanos Casa da Liberdade. Nesse sentido, o cinema, em sua articulação de imagem e som, se posiciona como ferramenta que contribui para abrir trincheiras nesse campo de resistência.

Mais do que documentos ou reencenações, as imagens tornam-se instrumentos de embate. Elas têm corpo, ritmo, silêncio, rasura e excesso. Operam como gesto político. Como nos lembra a pesquisadora Isabel Castro, em seu ensaio "Só me interessa o que não é meu", os filmes realizados com arquivos trabalham como “operações de reciclagem no cinema”, onde não se trata de copiar ou simplesmente recuperar o passado, mas de “intervir no tempo” e permitir que sons e imagens sejam ouvidos e vistos “de outra maneira”, através do “jogo de sobreposição de sentidos, de temporalidades e de olhares”. Essa prática é central nos filmes de Leandro Olímpio e João Pedro Bim.

Ambas as obras partem do arquivo — documental ou institucional — como campo de batalha. Nosso Panfleto Seria Assim revisita registros produzidos ao longo de uma década (2010–2020) como jornalista do Sindipetro Litoral Paulista, reconstruindo o cotidiano de greves, assembleias e protestos da categoria petroleira. Em meio ao colapso político e econômico da era Lava Jato, os trabalhadores enfrentam a ofensiva neoliberal contra direitos e soberania. O filme não mitifica a resistência — ao contrário, explicita seus limites, seus cansaços e sua solidão. A figura de Fábio Mello, dirigente sindical, é o corpo em que se inscreve a tensão entre desejo de mobilização e apatia política. A partir desses registros, Leandro Olímpio constrói não apenas um documentário sindical, mas um ensaio visual sobre a crise de representação e o esvaziamento das formas tradicionais de luta. As imagens revelam tanto o desgaste quanto a persistência de corpos em resistência.

João Pedro Bim, por sua vez, mergulha nos anos de chumbo com A Portas Fechadas, um longa que parte da revelação de um áudio da reunião do Conselho de Segurança Nacional que instituiu o Ato Institucional nº 5, em 1968. Durante décadas esse arquivo esteve oculto. O filme o traz à superfície e o confronta com as imagens de propaganda do regime — cinejornais, filmes institucionais e materiais da Agência Nacional que retratavam um Brasil em ordem, progresso e harmonia. A montagem, aqui, provoca silêncios longos, repetições rítmicas, congelamentos e ruídos, que criam um efeito de estranhamento e desnaturalização.

Ambos os filmes evitam a ilusão da objetividade documental. Preferem tensionar o que foi registrado, buscando nos interstícios das imagens e sons as contradições históricas que o discurso oficial tenta apagar. Leandro Olímpio aposta na observação, nas margens e na exaustão como lugar de resistência. João Pedro Bim opta por reencenar a farsa com os próprios materiais dos farsantes, devolvendo ao público a violência simbólica da manipulação. Em comum, os dois filmes revelam que os arquivos não são neutros — são zonas de disputa.

São dois trabalhos que não apenas revisitam episódios históricos, mas propõem, cada um à sua maneira, gestos fílmicos de sublevação. Ao operar com imagens do passado - recente e remoto - eles defendem a memória como direito coletivo, como espaço de crítica e como horizonte de transformação.