Babilônia, Expresso Parador, Monalisa e A Câmara
Babilônia, Duda Gambogi - 23min | 2024 | Cuba
Enquanto o dia cai na pequena cidade de Güira de Melena, em Cuba, o clube noturno Babilônia se prepara para mais uma noite de apresentações drag. Nesta noite, uma jovem subirá ao palco pela primeira vez. Sabemos pouco sobre ela, seu nome: Elizabeth de Victoria. Como uma forasteira, ela chega em silêncio ao local, com uma mala onde leva seu único vestido. No camarim, prepara-se sob os olhares e comentários das companheiras que há anos se apresentam ali. A noite avança, entre bebidas e apresentações, o filme parece se adaptar a esse tempo descontínuo e translúcido próprio das madrugadas. A fantasia encarnada nos corpos montados envolve o espaço e o público que, como nós, também assiste aos espetáculos. Somos envolvidos, mas não ludibriados: a fantasia, assim como a própria ficção, exige trabalho.
Do lado de dentro, acompanhamos os bastidores da montação entre as artistas, que se autodenominam transformistas. O que precede a grande cena, o que está por trás do que se vê, é o que o cinema busca revelar e reinventar. É no gesto de se montar que as drags agenciam seus desejos e dão vida a outras versões de si mesmas. Antes da apresentação, é no camarim que emergem as inseguranças, os silêncios, as fofocas, os desabafos. Babilônia, nesse sentido, dialoga com Morrer Como um Homem, de João Pedro Rodrigues. O camarim como fábrica de fantasia é espaço de sacrifício e também de nascimento.
Quando estamos prestes a presenciar a primeira apresentação de Elizabeth, algo parece irromper. Um apagão. Na escuridão, guiada pelas lanternas dos celulares e pelo brilho dos vestidos, fora do palco principal, o esperado show se transforma em performance. É o filme que torna aquele momento possível, registrando algo que, embora saibamos ser ficcional, se impõe como acontecimento. Um acontecimento dentro da narrativa, mas também entre aquelas personagens que, na vida, se apresentam noite após noite naquela boate. Elizabeth, enfim, é vista, mas não sozinha. Acompanhada pelas outras drags, vive sua estreia. Babilônia se revela como um rito de passagem, uma travessia necessária para que alguém, enfim, se encontre.
Expresso Parador, JV Santos - 25min l RJ - Brasil
Uma atriz circula pelo Rio de Janeiro, saltando de um trabalho a outro. No ônibus ela aproveita o tempo suspenso para almoçar, ligar para os pais, trocar de roupa. Entre um destino e outro, o trânsito que não cessa: as brechas se estreitam, os atrasos são mais comuns. Embora Lidiane passe quase todo o dia no transporte público, ela raramente chega na hora. O tempo, nessa rotina, é vivido como um bem material, aproveitável, algo que se ganhe ou se perde.
Diante de um contemporâneo que parece impossível, a saída é se apropriar do próprio absurdo para forjar outro mundo: ocupar aquele ônibus. Ele, então, assume uma nova forma, deixa de ser só um meio de transporte para virar casa, palco, sambódromo e, também, cinema. Na janela do ônibus projetam-se fotos da história da própria atriz, Lidiane Oliveira, que interpreta a si mesma e também assina o roteiro. A janela, como imagem em movimento, nos permite contemplar o presente, acessar a memória, nos olhar através do tempo, imaginar quem seremos, falar com os mortos. Observar a vida pela janela é também um exercício de invenção. E, assim, ao lado da personagem, assistimos sua vida passar.
O ônibus, em sua metamorfose, atravessa o tempo utilitário e, de certo modo, o desestabiliza. Parece querer romper sua linearidade ou, ao menos, converter sua lógica de medição. A narrativa da personagem se dobra a esse novo ritmo: entre o passado, o presente e o futuro, o filme opera em espiral, temporalidade comum às cosmologias não brancas. Expresso Parador propõe uma reescritura da história da própria personagem, mas também do próprio tempo. Abandonam-se os itinerários, já não importa por quais ruas do Rio de Janeiro esse ônibus passará, nem que horas são. Não há um destino pelo qual já não se haja passado, por sorte já não há um lugar para chegar, talvez porque já não existam chegadas nem partidas.
Monalisa - Tainá Lima - 17min l MG - Brasil
O curta começa com uma espécie de prólogo: vemos a imagem da Monalisa de Da Vinci com um dos olhos tapado. Em seguida, dois jovens negros estão deitados, um rapaz e uma menina. Ela também tem um dos olhos coberto por um tampão. Eles se observam e o rapaz pergunta: “Cê já pensou no que vai ser quando crescer”? A cegueira parcial se apresenta como uma espécie de prenúncio ou pior, uma profecia, de origem incerta, mas que se impõe como um destino incontornável, partilhado e reconhecido por todos os personagens.
O olho do cânone renascentista foi corrompido. Já não vê como antes. E aquilo que se compreendia como real recebe, agora, uma marca indelével. Essa iminência da cegueira torna-se uma assombração que contamina a narrativa. Quase todas as situações parecem estar sob o véu do artifício, próprio do cinema de gênero que, ora se manifesta através de intervenções performáticas mais explícitas (como os personagens comendo olhos), ora se dilui na linguagem fabular de uma brincadeira infantil. Dentro desse contexto, Monalisa, recria um Zé do Caixão negro que já não deseja matar, mas cegar. O olho, como esse sentido privilegiado, responsável por organizar a percepção do mundo, precisa ser rompido, cortado à la Buñuel.
O filme interroga, então, os regimes do olhar e aquilo que, por meio dele, se consolidou, quase sempre de forma autoritária, a ideia de razão ou verdade. A menina que não enxerga de um olho, os personagens de olhos vendados, o rapaz que espia uma senhora pela fresta da porta. O que é, afinal, aquilo que não podem (ou não devem) ver? Monalisa é povoado pela presença de vários fantasmas que rondam aquelas vidas. Não só o da cegueira, ou o da senhora, que, como um vulto, aparece e desaparece em cena, mas, sobretudo, o dos fantasmas da branquitude, sobre a qual se ergueu toda uma construção estética e política marcada pelo trauma e pela permanência da ferida colonial nos corpos negros.
A câmara - Cristiane Bernardes e Tiago de Aragão - 89min - 2023
Filmado entre maio e julho de 2022, durante o último ano do governo de Jair Bolsonaro, em um país atravessado pela pandemia e à beira de eleições decisivas, o documentário acompanha o trabalho de deputadas de diferentes partidos. Com uma câmera aparentemente discreta, o filme entra, sem hesitar, pelos corredores da Câmara e ali se instala com naturalidade. Ao contrário da cobertura midiática tradicional, que tende a espetacularizar a rotina parlamentar, aqui vemos, sobretudo, os bastidores: cochichos, declarações fora do microfone, uma deputada que canta durante um culto evangélico em plena Câmara.
A câmera parece estar totalmente a serviço do filme, como se pretendesse operar somente como um meio, invisível, sem interferências, relembrando as intenções do cinema direto. Não quer opinar, afirmar ou denunciar. O cinema quer circunscrever o ambiente político, para poder observá-lo com rigor, próximo ao registro etnográfico, como sugerido pelos diretores em entrevistas. Acompanhamos, assim, o cotidiano e as contradições da presença feminina em um meio estruturalmente masculino e machista. Entre ternos acinzentados e gestos impessoais, o ambiente é claustrofóbico. Apesar das mulheres representarem mais de 52% da população e do eleitorado brasileiro, ocupam apenas 18% das cadeiras na legislatura de 2023-2027, ainda assim o maior número já registrado na história do país.
Em meio a debates centrais para a vida das mulheres como direitos reprodutivos, aborto, racismo, laicidade do Estado, surgem vozes femininas que não apenas silenciam essas pautas, como operam a favor da retórica da extrema-direita. O discurso da esquerda parece, então, ser cooptado, sem grandes dificuldades; como um chiclete que perdeu o gosto, mas ainda pode ser mascado. O jogo se inverte a ponto de vermos a deputada Alê Silva, do Republicanos, falar abertamente sobre “racismo reverso”. Quando questionada por Sâmia Bomfim, do PSOL, sobre o absurdo de sua fala, alega, enquanto filma com seu celular, estar sofrendo discurso de ódio.
O problema é, sim, estético, sobretudo, linguístico. É preciso disputar a palavra, reconquistá-la, como sugeriu a escritora trans argentina Camila Sosa Villada ao refletir sobre o governo Milei. Diante disso, onde pode se posicionar o feminismo? A urgência pela igualdade de gênero parece caducar diante das artimanhas de uma extrema-direita que também reivindica, ao seu modo, representatividade. O feminismo, que em 1934 conquistou o voto feminino na Constituição de Vargas, encontra agora resistência dentro da própria bancada feminina, que o rejeita em nome de uma ideia essencialista do “feminino”. Um tipo específico de mulher é defendido, enquanto todas as outras são descartadas. O sulco só aumenta.
O filme, como nós, não sabe quais caminhos traçar diante da tragédia anunciada. No entanto, seu título relembra, câmara é substantivo feminino. Na última sequência essa resistência se materializa como uma promessa, ainda que exausta. Uma mulher de olhos tristes luta, em plenário, pelo direito ao aborto em um país onde mulheres, meninas e adolescentes são diariamente estupradas. Em seguida, ela retorna ao seu gabinete. Olha o filho e sorri. Senta-se em silêncio e retoma seu outro ofício: o amamenta entre aquelas mesmas paredes.