Do Milho ao Cachorro: Cinema indígena como instância de negociação cósmica

Num país que os representou historicamente pela chave da ausência, do preconceito e da exclusão, os povos originários vêm há décadas forjando seus próprios modos de disputar as imagens midiáticas. A emergência de um cinema indígena, cada vez mais diverso, localizado e radical, não apenas reconfigura as hierarquias do olhar, como também inaugura regimes outros de narratividade, de tempo e de espaço. É nesse contexto que dois filmes recentes, Bibiru: Kaikuxi Panema (Latsu Apalai e André Lopes, 2023) e Aguyjevete Avaxi’i (Kerexu Yxapyry, 2023), se colocam em relação: não por compartilharem uma mesma origem étnica, geográfica ou formal, mas por operarem, cada um à sua maneira, uma política sensível de escuta e cuidado.

Bibiru narra o processo de cura de um cachorro de caça que perdeu sua sorte, ou melhor, sua “ponema”. Seu dono, Waranaré Wayana, leva o animal à floresta para restituir-lhe a potência simbiótica que o liga aos espíritos. Aguyjevete Avaxi’i, por sua vez, filmado na Tekoa Kalipety (aldeia de retomada do povo do povo Guarani M'bya na terra indígena Tenondé Porã, zona sul de São Paulo), celebra o resgate do plantio de variedades tradicionais de milho, após décadas de devastação do solo e da cultura pelo monocultivo do eucalipto. Se, em um deles, acompanhamos a regeneração do animal que caça, no outro, vemos renovada a relação com a terra e o alimento sagrado. Ambos se organizam, portanto, como rituais cinematográficos de reativação: dos corpos, dos territórios e dos vínculos entre eles.

Os filmes não se limitam ao mero registro dos acontecimentos, mas, antes, estabelecem com eles um fluxo singular. O cinema, nesse sentido, não é meio supostamente neutro de documentação do mundo ou ferramenta de exposição dos povos, mas sim ofício de resistência, de invenção compartilhada e, acima de tudo, de negociação e comunicação cósmica. Nessas obras, inseparáveis de seus contextos comunitários, a câmera é extensão de sujeitos que conhecem a terra por outros caminhos. Bibiru é construído por jovens cineastas Aparai e Wayana a partir de uma oficina entre o Pará e o Amapá, e Aguyjevete é dirigido por uma das principais lideranças Guarani M'bya da atualidade, Kerexu Yxapyry, cuja militância se expressa com a mesma força nos gestos de plantio e de filmagem.

Ambos os filmes se posicionam, também, como contra-arquivos. Eles reencenam a caça e o cultivo não como exotismo etnográfico, mas como práticas cosmopolíticas. O cachorro Bibiru, com seu olhar astuto e seu corpo cansado, é mais do que um personagem: é figura-limite, tradutor entre mundos, catalisador de um tipo de conhecimento que se encarna na floresta e se atualiza na imagem. O milho Guarani, por sua vez, é mais do que alimento: é parente, é memória viva, é linha de continuidade entre ancestrais e crianças que aprendem a plantar e colher. Esses filmes não falam “sobre” os povos indígenas. Eles falam com e a partir de cosmologias que integram humanos, animais, plantas e espíritos em uma ecologia relacional, que desafia os dualismos da modernidade.

Há também, nos dois filmes, uma pedagogia sensível do tempo. Bibiru não se apressa. A câmera repousa nos gestos de Waranaré, na névoa que cobre a mata, no silêncio entre um disparo e outro. A dramaturgia se organiza mais por atmosferas do que por ações, como se o próprio filme passasse por um ritual de escuta. Aguyjevete, por sua vez, costura cenas do cotidiano do cultivo a depoimentos que atravessam gerações, criando uma temporalidade que mistura o agora e o ancestral, a denúncia e a esperança. O tempo do cinema indígena aqui não é linear nem cumulativo, é espiralado, respirante, atento às pausas e reaparições.

Ao aproximarmos Bibiru e Aguyjevete, podemos entrever um cinema em que o gesto artístico é inseparável do gesto político, e em que filmar é, antes de tudo, um modo de cuidar. Cuidar da terra, dos animais, das histórias, das palavras. O que está em jogo nesses filmes não é apenas a imagem dos povos indígenas, mas a própria possibilidade de regenerar mundos onde a arte, a cura e a política não são domínios separados. Na cadência do milho que volta a brotar e no olhar do cachorro que volta a caçar, o cinema se faz floresta, terreno múltiplo, vivo e poroso.