Entre restos e presságios

Há filmes que não se apressam em explicar. Que operam menos pela lógica da representação e mais pela da vibração: filmes que escutam, que hesitam, e que se deixam atravessar por um mundo que não cabe em palavras ou em imagens prontas. Viventes, Segunda-Feira, Então e Se Eu Tô Aqui é Por Mistério são obras que fazem do cinema uma prática de deslocamento e de fabulação. Em cada uma delas, o real aparece desajustado, rarefeito, ritualmente contaminado, e é nesse desajuste, nessa brecha de incongruência, que nasce a sua força poética e política.

Em Viventes, o gesto documental se curva levemente em direção ao insólito. A classe trabalhadora não é retratada de maneira fixa, como personagem-modelo ou heróico, mas como presença absurda, estranhamente vibrante. Nada ali é espetacular. As ações são simples, as palavras poucas, os ambientes despojados. Mas a justaposição das cenas, o uso da repetição e os pequenos desvios do cotidiano ativam uma percepção alargada. Há algo fora de lugar, ou talvez, mais precisamente, algo que resiste a se encaixar. A própria câmera parece tatear, como se buscasse um ritmo de corrosão e de reinvenção, e nunca uma chave interpretativa. É esse corpo a corpo com o banal, em sua dimensão sem tradução e sem moralização, que faz do filme um espaço de imaginação política. Como se, ao filmar o que sobra dos dias, revelasse o que há de poroso no porvir.

Segunda-Feira, Então parte da aparente clareza de um cotidiano urbano precarizado, mas logo irrompe para outra frequência. Uma mãe entregadora, um cobrador de aluguel, uma casa apertada. Elementos simples, mas montados para gerar fratura. A figura do cobrador ultrapassa o registro da ameaça ordinária: ele se transfigura em criatura grotesca, deslocada do real, sem nome nem rosto definidos. O filme se aproxima do terror, não como gênero ilustrativo ou comercial, mas como forma de dar corpo ao que o discurso social mal consegue articular. O horror aqui não é alegoria nem exagero, é o modo preciso de representar aquilo que o capitalismo transforma em normal, isto é, o medo contínuo de não conseguir viver. O som, a luz, a repetição obsessiva de espaços, tudo contribui para uma atmosfera densa, onde o real não se explica, mas implode.

Se Eu Tô Aqui é Por Mistério convoca uma outra forma de transfiguração. Não o horror, mas o feitiço. É cinema que opera como ritual, como performance coletiva, como reinvenção de linguagem. Em vez de responder à violência com realismo, o filme recorre à fabulação como tática de existência. Uma comunidade trans-afro-indígena, liderada por uma bruxa chamada Dahlia, resiste a uma ordem opressiva através da ancestralidade, do corpo e da magia. O filme não oculta seus códigos: dança, transe, encantamento, voz em off como sopro. Mas tudo isso não é estética solta, é política encarnada. O mistério do título não é metáfora, é método. Estar aqui é, em si, um gesto que exige outras temporalidades, outras mitologias, outros regimes de imagem. O futuro distópico que o filme encena não é projeção de catástrofe, mas palco para a reativação de potências arcaicas, invisibilizadas, indomáveis.

Esses três filmes não se encadeiam. Eles não contam uma história única, nem convergem para um ponto comum. São blocos heterogêneos, que coexistem em contraponto, criando uma paisagem de ruídos, ritmos e gestos desiguais. Em vez de unidade, propõem tensão. E é justamente nessa tensão, entre o documento e o feitiço, o horror e o ordinário, a permanência e a ruptura, que encontramos uma potência comum. Todos recusam a explicação imediata e a síntese convencional. São filmes que não querem esclarecer, mas sustentar o enigma do agora.

Se há algo que os conecta, talvez seja uma radical confiança no poder da fabulação, entendida não como fuga, mas como criação de presença e portal para a percepção. Fabular, nesse sentido, não é inventar o que não existe, mas sim dar forma ao que foi recusado, silenciado, deformado. Os trabalhadores que dançam, a mãe que resiste ao monstro, a bruxa que lidera o clã, nenhuma dessas figuras cabe na moldura da normalidade. E o cinema, ao filmá-las, não tenta contê-las. Tenta acompanhá-las e deixá-las emergir.

Na superfície, esses filmes falam de diferentes modos de violência. Mas o que mais os move é outra coisa: a invenção do sensível. Um sensível que não se contenta com os dados disponíveis, que não repete as fórmulas, que se arrisca na curva, na pausa, na sombra. Um sensível que, mesmo entre os restos e os escombros, ainda pressente outros mundos possíveis.