Mapas noturnos, territórios invisíveis
Quatro filmes curtos, quatro percursos singulares. E, ainda assim, entrelaçados por um impulso comum, o de interrogar o visível e estranhar as suas manifestações mais comuns, a fim de dar a ver algo além. Em Cavalo Serpente, Os Sonhos Guiam, Caravana da Coragem e O Lado de Fora Fica Aqui Dentro, o cinema não busca representar o mundo tal como é, mas convocar suas ausências, suas palavras silenciadas, suas imagens não filmadas. São filmes que atravessam o tempo e o espaço, perfurando o manto da realidade com as lascas dos sonhos. Filmes que desconfiam da estabilidade das formas, dos objetos e das histórias, e preferem apreender o universo como uma superfície passível de estranhamento e de escavação.
Em Cavalo Serpente, de Patrícia Smiths, a imagem torna-se campo de vestígio. Como num ensaio arqueológico do sensível, o filme procura sinais de uma presença ancestral nas sombras e na luz da fotografia. O que é essa entidade – cavalo, serpente, mulher, espírito – senão uma figura de encruzilhada, que desestabiliza os contornos do real e do imaginário? Com apenas seis minutos, o filme funciona como rito de evocação, poema de conjuração, onde a câmera investiga e performa. Há, na obra, um elogio do fragmento, uma ética da indeterminação que propõe ver menos para sentir mais.
Também em Os Sonhos Guiam, de Natália Tupi, o invisível é o que move a narrativa. O filme se move pelas trilhas oníricas de Mateus Wera, jovem liderança Guarani Mbyá da Terra Indígena Jaraguá. Seu corpo e sua voz são atravessados por visões noturnas, nas quais o mundo espiritual não se separa do político. O sonho, para o povo Guarani, é um modo de orientação e conhecimento, mais verdadeiro do que a vigília. O filme traduz essa faceta cosmológica, em imagens que não explicam, não fecham os sentidos, mas propõem convivências e inauguram partilhas. Entre a luta pela terra e a comunicação com os encantados, entre o tempo do agora e a memória dos ancestrais, o cinema se torna extensão de um corpo “visionário”, não apenas instrumento ou “câmera-olho”, como preconizava Viértov, mas “câmera-sonho”, canal sensível de sons e imagens que pulsam por dentro.
Caravana da Coragem, de Pedro B. Garcia, propõe outro trânsito: o da cidade, da noite, da solidão urbana. Em uma Brasília rarefeita e escura, vozes de jovens circulam por mensagens de áudio, criando um tecido íntimo e fantasmático que convoca afetos, angústias e desejos de existir. O filme não permite que a cidade seja reconhecida. Não se contenta em confrontá-la, simplesmente, pois para isso teria que validá-la e propagá-la em alguma medida. Antes, ele a distorce, como espaço mental, onírico, kafkiano, e como sítio atravessado por sentimentos e imagens de outra ordem. A caravana aqui não é épica, mas existencial, e também insurgente. Não há palco nem clamor, não há monumentos do progresso, não há edificíos do governo. Apenas luzes e sombras, relatos murmurados, intermitências e lampejos. E insurgência, com a instauração de um outro cenário, povoado por outras figuras e outros afetos, desafiando aquele concreto.
Por fim, O Lado de Fora Fica Aqui Dentro, de Larissa Barbosa, reencena um passado enterrado sob o concreto da capital mineira, fazendo emergir o fantasma histórico de Maria do Arraial, mulher negra marginalizada pela lenda urbana, apelidada de "Maria Papuda", depois de ser removida para a construção do Palácio da Liberdade. Entre fabulação e arquivo, a narrativa acompanha duas irmãs em processo de escuta e descoberta, em que o sobrenatural não é ruptura, mas continuidade: o mar que transborda da terra seca, a memória que se rebela contra o esquecimento planejado. A cidade moderna, silenciosa em suas fachadas, ganha voz através do corpo grávido, da fala insurgente e da câmera que não se satisfaz com o visível. O filme não quer representar o trauma, mas invocá-lo, abrindo espaço para a ancestralidade falar de volta. Nesse gesto, o cinema torna-se veículo de restituição simbólica, em que a história negada é finalmente reencenada como contra-imagem, contra-narração, contra-hegemonia.
O que esses quatro filmes compartilham não é uma linguagem ou um tema, mas uma atitude estética e uma disposição fabulatória, entendendo o cinema como instância de mediação com o intangível. São obras que se posicionam na contramão do excesso de informação e da saturação imagética. Preferem a sugestão à afirmação, a opacidade à transparência, a intuição à explicação. Essa postura estética, portanto, é também política. Em um mundo regido pela hipervisibilidade, pelo controle, pela utilidade e pelo algoritmo, esses filmes insistem em processos lentos, misteriosos, subterrâneos.
Mais do que falar “sobre” algo, cada um desses filmes opera como um contra-dispositivo. Em vez de reproduzirem as formas narrativas do visível dominante, eles deslocam o olhar para aquilo que está prestes a desaparecer ou que ainda não encontrou linguagem. Vestígios, vozes abafadas, imagens não filmadas, rastros que se recusam ao enquadramento. O cinema, nesses gestos, é menos espelho do mundo do que terreno de escavação. Talvez seja isso que o cinema contemporâneo mais radical nos propõe: não a transparência da verdade, mas o mistério de um mundo que insiste em fugir das formas dadas. Cavalo Serpente, Os Sonhos Guiam, Caravana da Coragem e O Lado de Fora Fica Aqui Dentro nos desafiam a nos deixar guiar por aquilo que pulsa, vibra e resiste, do lado de dentro.