Preservar a presença na brecha do espaço-tempo
Há filmes que não apenas contam o tempo: eles o dobram. Reviram-no como terra remexida, como o gesto de quem escava ruínas ou planta sementes. O que fazer com o que nos foi legado? E que futuro pode brotar dos restos?
Vivemos sob uma máquina simbólica que organiza o tempo, o corpo e o mundo sob um eixo. A hegemonia ocidental não apenas impõe modos de produzir conhecimento, mas também formas de silenciar outros — saberes que falam pelo corpo, pela oralidade, pelo gesto e pela ancestralidade, que atravessam o tempo em danças, cânticos e presenças. É a partir dessa chave que certas experiências cinematográficas operam: o cinema torna-se um dispositivo que tensiona o tempo cronológico e abre espaço para outras cosmologias, ao se afastarem de um realismo reprodutivo e proporem práticas contra-hegemônicas da imagem.
Leda Maria Martins, ao propor seu “tempo espiralar”, oferece uma fresta por onde escapar: o tempo não é uma estrada com começo e fim, e o mais importante: ele se movimenta no corpo. Ao reposicionar o corpo como arquivo e superfície de saber, o “corpo-tela” reconhece nas práticas ritualísticas, performáticas e sensoriais uma tecnologia própria de criação e transmissão de memória. No final das contas, esses filmes não propõem uma volta ao passado. Propõem algo mais radical: criar, a partir dele, um futuro que ainda não existe. Reposicionar o arquivo não como vestígio, mas como semente.
É comum que a memória, quando mediada por imagens, chegue até nós com certa aura de verdade. Felipe Santana (Mysteryo), em Sombras de Macumba Sob a Luz da Memória, recusa o conforto do testemunho estável e realiza uma operação crítica sobre os arquivos jornalísticos, decretos e registros filmados que evidenciam as ideologias racistas e conservadoras presentes em discursos oficializados sobre terreiros de macumba no Rio de Janeiro no início do século XX. A partir de seus próprios vestígios, o documento histórico torna-se escombro, onde Mysteryo rejeita a transparência e aposta na fricção de camadas sensoriais e rasuras visuais. Trata-se de uma contravisualidade que reposiciona o olhar a partir do corpo coletivo e da ancestralidade.
Em Quando Aqui, a casa da família do diretor André Novais Oliveira se torna um ponto de torção temporal. O ontem, o hoje e o amanhã se atravessam em sobreposições — fotografias antigas, vídeos de família. O tempo aqui não anda para frente — ele circula entre as quinas da sala, se aloja no fundo do quintal e o que parece pequeno se torna portal para outros tempos e relações, em que o mais íntimo é também o mais amplo. O gesto de filmar torna-se também gesto de escavar: os rastros da memória e da convivência emergem no entremeio das imagens, mostrando que um mesmo lugar pode conter múltiplos mundos, a depender do olhar de quem o atravessa. Trata-se de um deslocamento radical: e se o tempo não fosse linha, mas território?
Se Quando Aqui cava num terreno em Contagem uma arqueologia do afeto e da permanência, Vollúpya, de Jocimar Dias Jr., desenterra uma cápsula que mescla ficção científica, documentário e performance para reimaginar a boate Vollúpya, espaço de sociabilidade LGBTQIAPN+ em Niterói nos anos 1990. Os corpos dançantes agora habitam uma nave intergaláctica, pilotada por um descendente ainda por vir, que encontra, na pista de dança, a energia de uma utopia em estado bruto. O que parecia lembrança vira plano de fuga e a memória queer se reconecta com sua pulsão vital, em resistência e celebração.
Como uma costura, tradicional da oralidade, Yvy Pyte – Coração da Terra nasce do desejo do cineasta guarani Alberto Alvares (Tupã Ra’y) de percorrer as terras do povo Guarani kaiowá em busca do tekoha, terra originária atravessada por espiritualidade, onde se encontra a reza, as palavras, os cantos, onde se planta, se colhe, onde se ensina e onde se aprende - uma leitura do mundo. Num gesto de cartografia, as palavras dos mais velhos são sopradas. Capturadas pelas imagens de Tupã Ra’y, ele nos convoca a refletir sobre de que maneira podemos (re)visitar nosso tekoha, aquele lugar que nos pertence. Aqui, o cinema já não é apenas linguagem, o filme é elevado à condição ontológica, a dimensão mais ampla dos elementos que o tornam particular. Yvy Pyte projeta um mapa contracolonial onde o cinema atua como prolongamento da cosmologia e práticas ancestrais.
Esses filmes não apenas recuperam memórias, eles experimentam o tempo. Há neles uma política da imagem que não se resolve no discurso. Uma política sensível, que atua no modo como as formas são compostas, misturadas, sobrepostas, interrompidas. Uma política que nasce da escuta, da pele, da dança e da espiritualidade. Filmes que instauram a estética do rastro: porque se mobilizam em torno dos ecos refletidos nas superfícies e se deslocam com a fluidez de uma dança, porque reconhecem que esse — o rastro — é o maior gesto da nossa existência.